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#HoraDaResenha: PIG, O PUG

Por Kátia Chiaradia

 

A literatura infantil foi, historicamente, julgada e avaliada com base no triângulo criança – família – escola. Por isso, a tendência em muitos países, inclusive no Brasil, era relegar aos livros (assim mesmo, todos num balaio só) a finalidade educacional[1]. Ocorre que livros didáticos podem ser ótimos (e muitos realmente o são), mas eles não alcançam o que a literatura alcança no processo de construção da autonomia de uma pessoa e, em especial, de uma criança. Por essas e outras, escritores pelo mundo todo passaram a mudar sua maneira de falar com as crianças através dos livros[2].

Foi assim que começaram a surgir, ao longo das décadas, também na literatura infantil, um tipo que já tinha lá seu espaço na literatura para adultos: os anti-heróis, personagens livres das amarras sociais, sem qualquer virtude dos heróis.

Toda essa introdução pretende apresentar a vocês o Pig, um pug que tem seu carisma inversamente proporcional às suas virtudes. Se ele fosse um personagem de TV, seria o Augustinho Carrara: aquela criatura que apronta coisa errada atrás de coisa errada, não aprende nunca, e ainda assim nos cativa. É inexplicável.

Pig é o protagonista de uma série (de muito sucesso!) do australiano Aaron Baby[3], traduzida para mais de 30 países, chamada “Pig, o pug”, nome também do primeiro livro. Pig tem um paciente e fiel amigo, o Almôndega, um salsichinha que não desiste de buscar em Pig o seu melhor.

Adultos mais tradicionais e canônicos certamente colocarão os livros do Pig no topo do Index proibitorum infantil, dizendo que, ao fazer coisas erradas, Pig induzirá também as crianças ao erro. E alguns até tentaram explicar isso aos jovens leitores: “é muito feio fazer essas coisas”.

Há algumas semanas vi um casal com uma criança pequena na nossa livraria. Eles tinham ido buscar um livro escolar do filho mais velho. Enquanto aguardavam o livro chegar à recepção, decidiram folhear algumas páginas de “Pig, o Travesso” para a menina. Como é de se esperar, a mocinha ria só de olhar a ilustração, antes mesmo que a mãe lesse o texto para ela, e disse-lhes, sorrindo até com os olhinhos, que queria o livro. Ora vivas! Uma criança pediu um livro! Mas o pai respondeu e a mãe assentiu: “Esse livro ensina coisas erradas, vamos escolher um mais legal juntos? A gente ajuda você”.

Antes de expandir a discussão, esteja claro aqui que esses adultos, sem dúvida, buscavam o melhor para sua criança, mas…

Não, não e não: três vezes não.

Não, primeiramente, porque as crianças, diferentemente dos adultos, também são livres de muitas amarras sociais e tendem a ler o conjunto da obra antes de se prenderem a detalhes morais. Como costumo presentear crianças com livros, tive a oportunidade de ver meus amigos adultos e suas crianças compartilharem a leitura de “Pig, o pug” e “Pig, o travesso”: os adultos tendem a enxergar um personagem que ‘ensina coisas erradas’[4], enquanto as crianças enxergam um personagem que sempre se dá mal quando faz coisas erradas. Ou seja, não é preciso brifar a leitura das crianças, basta esperarmos que ela elabore aquela informação, aquele mar de emoções[5]. Quando uma criança começa a escolher, ela o faz com base naquilo que aprendeu com seus mentores.

Não, também, porque o fato de um livro (ou filme, ou música, ou qualquer manifestação artística) retratar algo ou colocá-lo em discussão não significa ensiná-lo. E, menos ainda, significará que os leitores estejam predispostos a aprender justamente a parte indesejável do que conheceram. Nas histórias do Pig, meu sobrinho, de 6 anos, gosta do fato de o Almôndega ser “bonzinho, não brigar com o Pig, mesmo ele aprontando e não dividindo as coisas”. Os amigos dele se divertem com a calma do Almôndega ao lidar “com o Pig estressadinho”. Eu até acredito que eles se identifiquem com o Pig, mas vejo que eles escolhem aprender com o Almôndega.

Não, finalmente, porque a figura do anti-herói é tão importante e necessária na elaboração de nossa identidade quanto a do herói (isso, se não o superar…). É preciso conhecer “o outro lado” para sermos capazes de reconhecer “o nosso lado”. Isso é autonomia. Estudos recentes apontam que crianças que se sujam pouco ou vivem em espaços extremamente limpos têm mais propensão a adoecer, já que seu sistema imunológico nunca foi desafiado. Assim também ocorre com a literatura: crianças a quem se nega um pouco de impasse têm seu direito à leitura autônoma limitado.

Por tudo isso, podemos afirmar categoricamente: Pig é um ganho na trajetória de leitura de qualquer criança (e adulto!). A boa notícia é que, em algumas semanas, lançaremos aqui no Brasil “Pig, o campeão”, que está tão divertido quanto os dois primeiros!

 

Tema transversal dos PCNs: Ética;

Direitos de aprendizagem abordados (BNCC- Educação Infantil): Conviver, Expressar, Conhecer-se;

Campos de atuação (BNCC- Ensino Fundamental): Campo artístico-literário;

[1] Há um livro exemplar dessa literatura ‘para crianças’ de foco moralizante, traduzido por Olavo Bilac como “Juca e Chico”, que circulou muito no Brasil, há pouco mais ou menos de um século.

[2] Monteiro Lobato falou e escreveu muitas vezes, principalmente em cartas a amigos e a seus pequenos leitores, que o que mais o motivou a começar a escrever era o fato de não haver boa literatura para crianças, coisa que ele passou a notar quando se tornou pai.

[3] Aaron também é autor de “Os Caras Malvados”, outra série de sucesso mundial absoluto.

[4] Olha aqui, de novo, a ideia de que “o livro ensina”!

[5] Uma situação muito parecida ocorre com a antiga princesa Emília: os adultos veem nela uma boneca mal-educada e até racista; as crianças veem uma personagem que se dá mal três páginas depois de ser “bocuda” com a tia Nastácia.

 

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