O autor morreu. Todo mundo que leu o quarto capítulo de “O rumor da língua”, de Roland Barthes, texto clássico para quem é “da literatura”, entende bem o que essa frase significa. E concorda. Eu mesma vivo dizendo (por aqui e pelas salas de aula) que a literatura é algo muito particular que ocorre entre leitor e texto, e que o autor muito pouco ou nada tem com isso.
Pois bem. Aqui vou me desdizer um pouco, porque realmente acho que “A” e Dalcio são seres indissociáveis.
Dalcio é um querido campineiro. E com o adjetivo na frente, mesmo, porque ele é mais querido que o campineiro. Seu olhar observador e seu trabalho gráfico cheio de sensibilidade já foram muitas vezes para além das fronteiras físicas e afetivas do Brasil. Ele é um dos cartunistas mais premiados do mundo, com 116 prêmios em 13 países. Recebeu prêmios na ONU (Lurie UN Award) e também em Portugal, em três ocasiões no World Press Cartoon. No Oscar dos quadrinhos brasileiros, o HQMIX, Dalcio foi premiado em cinco edições. Em 2016, foi à Bélgica para receber o troféu de 1º colocado no 55th International Cartoonfestival Knokke-Heist, o mais tradicional do mundo. Uma bagagem imensa até para quem é cartunista profissional desde os 13 anos de idade.
Acho difícil que uma pessoa que leia notícias, mesmo que de maneira irregular, não tenha se deparado e se emocionado muito com o trabalho dele. Foi nessa charge que minha profunda admiração pela assinatura “Dalcío” explodiu:
Eu gosto do olhar cuidadoso e sensível que Dalcio tem com as crianças. É difícil ser fiel às crianças, e ele é. Por isso, quando li “A”, não li apenas a divertida história do garotinho Alan. O traço do Dalcio, já tão familiar aos meus olhos, me fez ver o Alan dentro do complexo universo das crianças que tentam viver nesse mundo que nós, adultos, estragamos dia a dia. E esse livro que nasceu da minha leitura particular era tão bom quanto o livro original. Depois reli “A” e vi outro livro. E adorei todos.
“A” é um divertido diálogo entre a letra “A” e Alan, um garotinho muito criativo e com grande noção da materialidade do mundo que o cerca. Alan ainda não conhece as letras e os números, por isso não reconhece a letra “A”, quando ela lhe pergunta, logo na primeira página: “Oi! Você sabe quem eu sou?”.
Alan nos diverte ao fazer uso de sua visão concreta de mundo, tão característica da idade. O menino levanta muitas hipóteses sobre quem seria seu recente amigo, buscando, no mundo que o cerca e nas suas experiências, algo em que aquela “nova forma” se encaixe: seria um chapéu? Um cone de sinalização? Um braço de uma estrela? Apenas ao final, quando “A” convida Alan a brincar de escrever o nome, o garoto reconhece: “A” é a primeira letra de seu nome!
Em termos mais técnicos, podemos dizer que a temática contribui significativamente para que a criança leitora, através da comparação entre “A” e os diversos objetos do mundo, vá trabalhando o reconhecimento visual da(s) letras(s). Além disso, o livro estimula que esse jovem leitor olhe de maneira mais investigativa o mundo em que está inserido. “A” despertar um olhar curioso para as formas das letras e algarismos, o que, por si só, já é capaz de fomentar um contato agradável com o mundo escrito. Quem trabalha com alfabetização sabe que uma relação assim já é um belo primeiro passo.
O mote para colocar o leitor em contato com tantas e tão variadas personagens é também a pergunta que leva ao nome ao livro: quem é e onde existe “A”? E, ao não encontrar “A” no mundo não letrado, a criança encontra muitas outras formas de olhar para esse mundo.
As ilustrações, por sua vez, abdicam do registro do cenário para direcionar a leitura não-verbal às ações das personagens e às mirabolantes hipóteses de Alan. A partir de imagens, mobiliza-se a curiosidade do leitor para a apreensão dos traços que constroem a(s) letra(s). Eu já disse antes e reforço: gosto de ilustrações que aproveitam bem o espaço branco, principalmente para quem está se iniciando na apreciação estética do mundo das ilustrações, porque elas não atropelam o leitor.
A alegria de Alan, ao identificar como começa a escrita do seu nome, é um propulsor para olharmos o mundo com mais investigação. Que coisa linda é uma criança reconhecer seu nome! Ali começa um novo, desafiador e mágico trabalho de construção identitária.
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