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Blog da Saber e Ler

#HoraDaResenha: A ORQUESTRA DO PENICO

Por Kátia Chiaradia

 

Eu detesto barulhos, assim como a maioria dos sons. Tenho uma sensibilidade auditiva inacreditável para muitos que convivem comigo: eu ouço o celular do vizinho vibrar. Só durmo ou trabalho (como nesse momento) com protetores auditivos. Barulhinhos de teclado de celular? Top five das discussões entre mim e minha irmã (que, ironicamente, tem perda auditiva). Barulho de comida na boca? Fulmino com os olhos até a pessoa barulhenta perder a fome. Tudo isso pra dizer que eu jamais, até 2018, presentearia uma criança com um livro de sons. Mas 2019 trouxe algo diferente: “A orquestra do penico”, de Guido Van Genechten.

Quando vi a capa do “A orquestra do penico”, o selo “Livro de sons”, do lado direito, pareceu gritar comigo, e eu posso jurar que me transformei naquele emoji que, desolado, olha pra cima se perguntando “por que isso?”. Ler o livro, contudo, era a minha tarefa; então me enchi de coragem e profissionalismo e olhei para o lado esquerdo da capa: “Guido van Genechten”¹.

Ora, ora, aquilo era algo, senhores! Porque o Guido jamais deu uma bola fora em seus livros para crianças. Em especial para as bem pequenas.

E, de fato, dessa vez não foi diferente.

“A orquestra do penico” é um primor desde a capa: cinco expressivos animaizinhos sentados em seus penicos, atentos a um pinguim maestro, em seu púlpito ao centro do grupo, trajando o lindo fraque que a natureza deu a todo pinguim. A encadernação é um capricho só, com capa dura (de verdade) e papel fosco 2. A maneira como o título está disposto dialoga com a ideia de uma partitura, em um feliz trabalho de multissemiose. Ao redor, adornando e emoldurando um fundo branco, que dá a necessária leveza de cores e imagens à leitura de bebês, vemos uma cortina vermelha clássica: eles estão em um teatro. Mas onde estão seus instrumentos musicais?

No verso da capa, nove animaizinhos, em fila, carregam seus penicos em direção a uma placa onde lemos “teatro”. O macaco, o único que não está olhando para a frente, carrega seu penico “diferentão” sobre a cabeça. É divertido. Abaixo de cada um, numa elegante caligrafia, vemos seus respectivos nomes (porque a identidade começa no nome, como começamos a saber desde bebês). Mais uma página virada e conhecemos o décimo “peniqueiro”, Mini, um serelepe camundongo que estará presente em todas as cenas, até o final do livro.

Na primeira página do enredo, o narrador convida os leitores a prestarem atenção a todos os sons do ambiente, como bater de pés, toque de telefone, assobio de pássaros. Até aí, nada novo. Muitos livros reproduzem os mais variados sons, ligados ou não às ilustrações e ao enredo, e normalmente não são bons. Mas na segunda página, o narrador explica a diferença entre esse e outros livros: “Vou levá-lo a um verdadeiro CONCERTO de penico.” É de música, e não de sons, que “A orquestra do penico” fala.

Embora eu não saiba tocar nem campainha, tenho muitos amigos músicos. Há muitos anos, pedi a um deles, Lucas Lima³, que desde os dois anos de idade toca violino, que me explicasse o que era nota musical. No meio da explicação, ele me disse algo muito significativo para alguém que detesta sons, como eu, mas que adora certas músicas: a música surge da harmonia entre os sons e o silêncio. A música é organizada 4.

É precisamente isso que acompanhamos até o final das páginas: o maestro pinguim vai organizando os sons e as pausas de cada músico até que, no fim, temos uma música alegre, engraçada e organizada. É muito legal acompanhar essa construção coletiva 5.

Mas, afinal, qual a relação dessa construção musical com os penicos? Essa é a parte divertida que é o maior gancho da atenção das crianças. Quem já acompanhou o desfralde de uma criança sabe como crianças se divertem quando descobrem que são capazes de fazer barulhos com o próprio cocô 6. Nossa relação com o cocô na infância é assunto seríssimo na psicologia e, portanto, também na pedagogia 7. Pois aí está: nossos animaizinhos músicos fazem música com o que têm à mão, incluindo seus xixis, puns e cocôs!

Enfim, vale muito a pena ler “A orquestra do penico”. Guido conseguiu unir, em um só livro, três predileções das crianças bem pequenas: animais, cocô e música.

(Eu sei, parece estranho ler as três palavras lado a lado, mas, acreditem, deu liga: é um show de livro.)

1 – Como nós já dissemos aqui, na resenha do “Assim como você”, Guido é uma sensação das crianças na primeiríssima infância. Talvez seu livro mais popular no Brasil, até agora, seja “O que tem dentro da sua fralda?”, mas ele tem muitos títulos já publicados aqui pela Saber e Ler também. Além de “A orquestra do penico” e “Assim como você”, aprovado no PNLD literário 2018, “Você sabe usar o penico?”, “O fantasma Spartacus”, “A festa do nariz” e “Jonnie” são imperdíveis.

2 – Gosto de papel fosco para livros de crianças pequenas e bem pequenas porque, com ou sem luz, conseguimos ver a ilustração toda. Os papéis brilhantes criam reflexos que podem não significar muito para nós, adultos, mas que podem afetar a leitura dos leitores menos experientes.

3 – Sim, o Lucas da Família Lima, que também é bacharel em Música pela Unicamp.

4 – Mas não rígida!

5 – Dá um projeto, hein?

6 – E quem nunca acompanhou esse processo está lendo esse texto e se perguntando se eu estou mesmo falando de cocô. Sim, estou. Acredite, faz sentido.

7 – Vejam bem, não se trata de um livro “para” o desfralde, mas sim “sobre” o desfralde em alguns momentos. Em nossa perspectiva, a literatura, em qualquer idade, é uma vivência estética e não uma ferramenta moralizante.

 

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